domingo, outubro 02, 2011

Os lambe-cus

"Noto com desagrado que se tem desenvolvido muito em Portugal uma
modalidade desportiva que julgara ter caído em desuso depois da revolução
de Abril. Situa-se na área da ginástica corporal e envolve complexos
exercícios contorcionistas em que cada jogador procura, por todos os meios
ao seu alcance, correr e prostrar-se de forma a lamber o cu de um jogador
mais poderoso do que ele.
Este cu pode ser o cu de um superior hierárquico, de um ministro, de um
agente da polícia ou de um artista. O objectivo do jogo é identificá-los,
lambê-los e recolher os respectivos prémios. Os prémios podem ser em
dinheiro, em promoção profissional ou em permuta. À medida que vai lambendo
os cus, vai ascendendo ou descendendo na hierarquia.
Antes do 25 de Abril esta modalidade era mais rudimentar. Era praticada por
amadores, muitos em idade escolar, e conhecida prosaicamente como
«engraxanço». Os chefes de repartição engraxavam os chefes de serviço, os
alunos engraxavam os professores, os jornalistas engraxavam os ministros, as
donas de casa engraxavam os médicos da caixa, etc... Mesmo assim, eram
raros os portugueses com feitio para passar graxa. Havia poucos
engraxadores. Diga-se porém, em abono da verdade, que os poucos que havia
engraxavam imenso.
Nesse tempo, «engraxar» era uma actividade socialmente menosprezada. O
menino que engraxasse a professora tinha de enfrentar depois o escárnio da
turma. O colunista que tecesse um grande elogio ao Presidente do Conselho
era ostracizado pelos colegas. Ninguém gostava de um engraxador.

Hoje tudo isso mudou. O engraxanço evoluiu ao ponto de tornar-se
irreconhecível. Foi-se subindo na escala de subserviência, dos sapatos até
ao cu. O engraxador foi promovido a lambe-botas e o lambe-botas a lambe-cu.
Não é preciso realçar a diferença, em termos de subordinação hierárquica e
flexibilidade de movimentos, entre engraxar uns sapatos e lamber um cu.
Para fazer face à crescente popularidade do desporto, importaram-se dos
Estados Unidos, campeão do mundo na modalidade, as regras e os estatutos da
American Federation of Ass-licking and Brown-nosing. Os praticantes
portugueses puderam assim esquecer os tempos amadores do engraxanço e
aperfeiçoarem-se no desenvolvimento profissional do Culambismo.

(...) Tudo isto teria graça se os culambistas portugueses fossem tão mal
tratados e sucedidos como os engraxadores de outrora. O pior é que a nossa
sociedade não só aceita o culambismo como forma prática de subir na vida,
como começa a exigi-lo como habilitação profissional. O culambismo
compensa. Sobreviver sem um mínimo de conhecimentos de culambismo é hoje
tão difícil como vencer na vida sem saber falar inglês."

Miguel Esteves Cardoso, in "Último Volume"

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