sexta-feira, janeiro 07, 2011

Luvas e fábulas*

Em Portugal, para liquidar-se um regime, apenas se requer a criação de um não-tema. Qualquer coisa que alimente os sonhos de vingança, açule a inveja pelo chinelo do vizinho e seja susceptível de corresponder à máxima popular de "quem conta um conto, acrescenta um ponto", terá um inesgotável manancial para estorietas. Nos tempos de Pombal, existia a "conspiração nobiliárquico-jesuíta", copiosamente reproduzida cento e cinquenta anos depois pelo sucedâneo PRP. Após as invasões francesas, acentuou-se a quase fábula do "absolutismo" e criou-se a lendária pugna pela "liberdade e representatividade", mesmo que isso significasse a clausura do país inteiro, nos ávidos cofres de uma mão cheia de oportunistas bem instalados. Com a República, foi o que se sabe, desde as maluquices positivistas do Teófilo, até ao repescar do libelo condenatório de Maria Antonieta, aqui tendo como alvo a Rainha de Portugal que por si, valia mais do que todos os directórios republicanos juntos, fossem eles os dos Centros políticos sitos ao Chiado, ou os das tabernas alçadas a Academias. Bem vistas as coisas, estamos como sempre, perante a real proporção das coisas. Quando na Alemanha e cada um à sua maneira, Marx ou Hegel escreviam e vociferavam, sendo acompanhados na invenção de uma outra história tão nebulosa como as óperas de Wagner, por uma plêiade de homens dados "às novidades" do seu tempo, aqui em Portugal tirava-se o chapéu perante o citado Teófilo, génio incomparável entre aqueles outros que no Casino também souberam interpretar, ou melhor dizendo, inventar um passado tão credível, como a felicíssima e dourada "época do municipalismo" medieval de Herculano. Contentamo-nos com pouco, tudo se reduzindo a uma mudança de bandeira, esta com as tais "cores positivistas", por mais negativas que elas se tenham mostrado.



Há cem anos troavam "casos da Monarchia", confundindo-se deliberadamente a cobiça mais básica de um ou outro agente político estabelecido nas empresas - tal como hoje -, como se de questões de regime se tratassem. Sabia-se que a Coroa estava acima, muito acima de qualquer tipo de participação nas negociatas imobiliárias de tabacos, de fomento ou de fósforos, por mais incendiários que estes últimos fossem. Apesar desta ser uma verdade por todos conhecida - o Rei D. Carlos era de longe, o monarca mais pobre de toda a Europa -, todos os males advinham "da Monarchia". Naquela teimosia infantil em que nos reconhecemos, assim era e assim tinha que ser, "porque sim". Uma lista civil que datava de há oitenta anos e que jamais sofrera qualquer actualização e que para agravar a situação, ainda era cortada a cada anual entrega, servia para pretexto de grande escândalo público. Os bens pessoais - o património da Casa de Bragança - do monarca, eram usados para as próprias despesas de representação do Estado e pasme-se, quando da "Grande Subscripção Nacional" pós-Ultimatum, a aviltada Casa Real foi quem mais contribuiu para a aquisição do cruzador Adamastor que sintomaticamente, iniciaria a sedição que a derrubaria! Mas disso poucos terão o devido conhecimento, pois a história é escrita pelos vencedores, por momentâneos que eles sejam.



Alguém conseguiria imaginar os senhores Cavaco Silva ou Manuel Alegre abrirem os cordõezinhos das suas preciosas bolsas, para subsidiarem uma viagem num Falcon ou um banquete oficial durante a visita de um Chefe de Estado estrangeiro a Portugal? Claro que não. Seria ridículo, desprestigiante para o Estado português e um esbulho da propriedade alheia, neste caso, a do Chefe de Estado em exercício no gabinete belenense. Em suma, uma injustiça, para não dizermos roubo descarado e sob coacção moral de uma imprensa ávida por misérias.



A República Portuguesa está agora a provar do veneno que prodigamente espalhou, por quantos "anéis de caixa-falsa" pôde distribuir ao longo de mais de um século. Criou o escabroso princípio basilar da total credibilidade da insinuante atoarda, por mais miserável, mesquinha e torpe que ela fosse. Não é preciso empunhar um telescópio para claramente vermos que os "escândalos" dos Tabacos, do Predial, dos Tratados de delimitação colonial com a Inglaterra, da "filha do jardineiro" ou dos "Adeantamentos", são mixuruquices ou míseras migalhas, se compararmos com o que hoje se passa. Sem qualquer exagero no paralelismo anacrónico, o que são os "escândalos" da viragem do século XIX-XX, quando confrontados com os roubos ou desperdício de biliões provenientes dos Fundos Comunitários, a ostensiva má gestão e fiscalização dos mesmos, as falências criminosamente induzidas de tantas empresas outrora produtivas e de todos os sectores, os caixotes e caixotes de "luvas" a propósito de armas, computadores, adjudicações, viaturas e outros bens mais, os favoritismos nos concursos públicos, os casos Freeport, Face Oculta, Casa Pia, os "sobreiros Portucale", do BPP, do BPN, etc, numa exaustiva lista sem fim e que a memória já não comporta?



A ser dita, a verdade prende-se com a inextricável rede de interesses de casta que "a política e os negócios" criaram, nela fazendo cair - quantas vezes inadvertidamente? - muitos dos utentes e comensais dos vários palácios que conformam o poder. Não se trata de contabilizar números mais ou menos extensos pelos zeros colocados à direita do 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 ou 10, mas sim, de um princípio em si. Justa ou injustamente - e preferimos acreditar que este é um caso de indecente injustiça -, Cavaco e Alegre estão a ser fustigados em plena praça pública, por uma corrente que impiedosamente lhes vergasta as costas. Corrente velha e enferrujada, mas sempre activa e símbolo de poder, porque forjada na bigorna republicana que eles ainda há quatro meses exaltaram em ditirâmbicos discursos. Agora, que chamem o ferreiro que a consiga atirá-la para o incandescente cadinho.


Têm o que quiseram. Têm o que bem merecem, como representantes de um passado do qual tiram o institucional benefício.


*PUBLICADO ORIGINALMENTE NO ESTADO SENTIDO

Sem comentários: